“Você não fotografa com sua máquina.

Você fotografa com toda sua cultura.”


Sebastião Salgado

26 junho 2016



"Teu crime branco, Blumenau, limpo quando lavadas tuas mãos, conheci primeiro nos versos de Lindolf Bell. E me pergunto, quantos corpos subjazem sob a tua história? Há, claro, aqueles que preferem não ver. São a maioria, e compreendo. Melhor sentir o perfume das flores. Mas não há flores sem estrume, a morte adubando a vida. Ou duvidas, minha cidade jardim?
Martinho Bugreiro invadia os matos com seus caboclos, bravos a decepar xoklengs, porque “corpo é que nem bananeira, corta macio”, escreveu Ireno Pinheiro, também caçador de índios. A mata, o inimigo a vencer! Retornavam às ruas varridas exibindo os pares de orelhas, prova da chacina, garantia do pagamento. Os colonos festejavam e agradeciam a Deus o sucesso da caçada. Claro, outros tempos. Hoje permitimos que morram afogados nas parcas terras que lhes sobramos, lá nos cantos de José Boiteux.
Karl Kleine foi um imigrante que trabalhou como ajudante na demarcação de terras da colônia Blumenau. O ofício levou-o a explorar as matas mais densas do Vale do Itajaí e, em um trecho das suas memórias, escreveu: “havia um vulto na margem, parecia estar bebendo água na mão. Estava protegido pelos arbustos, tanto que não dava para reconhecer se era um dos nossos ou um bugre. Era possível percebê-lo somente quando se agachava para chegar até a água. Lohmeier levantou a espingarda. O disparo atravessou o rio com estrondo e, em seguida, ouvimos um berreiro. No mesmo momento, o segundo disparo. O berreiro passou a lamento. Lohmeier pegou sua pistola e gritou: ‘– encosta, encosta! É um bugre!’”
Não era um bugre (xokleng), mas um macaco bugio. Ainda segundo Karl Kleine, depois de alvejado, o bugio “passou a mão no peito e a estendeu toda ensanguentada. Ele gemia como uma pessoa agonizante. Seus gemidos nos atingiram profundamente. Percebemos nitidamente que ele chorava como gente.” No trecho podemos perceber que um bugio agonizante era capaz de suscitar nos mateiros mais humanidade do que um indígena. Por que não contaram esta história no desfile de 2 de setembro? As incontáveis orelhas cortadas, o pé mutilado de Ana Bugra, as aldeias incendiadas não cabem em nossa história tão repleta de virtudes e heróis?
E se acreditas, Blumenau, que exagero, e já escolhes tuas palavras para lançá-las como pedras na seção de comentários, respondo-te novamente com a poesia de Bell quando este diz: “veste a carapuça / e ensina teu filho / mais que a verdade camuflada / nos livros de história”.
Ou preferes continuar lavando tuas mãos, sujas deste teu crime branco?"



Viegas Fernandes da Costa